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Texto de homenagem ao 1º de Maio F. C. S., escrito na primeira pessoa, no sentido metafórico, imaginário, como se o clube fosse um ser humano falando do seu percurso de vida.
Chegar aos 100 anos é empreender uma travessia pelo tempo e pela vida, é atingir uma insustentável leveza de nós mesmos: há perdas e ganhos.
No fundo, o importante é subsistir alguma lucidez, que é a capacidade de conversar, de ter uma certa autonomia e orientação no tempo e no espaço. Resta-nos o que somos, o que a vida é. Cada fase da vida tem sua importância em cada momento. Se vamos tendo algumas falhas na velhice, por outro lado, vamos adquirindo mais sabedoria. E a sabedoria é o encontro de toda a existência, é onde nós somos capazes de ver o sentido real da vida... Até há quem afirme que a velhice é onde a pessoa tem a possibilidade de ser feliz em toda a sua existência.
Cem anos da minha existência
Sentindo-me inundado de grande emoção, atrevo-me a falar um pouco de mim ao comemorar cem anos de vida. Não consigo dimensionar quão imenso é o valor desta data gloriosa, porque nestes cem anos há um acúmulo de factores predominantes que me fizeram lutar e vencer várias etapas.
Sou um dos mais antigos clubes de Portugal e o 4º do distrito de Setúbal, sendo ultrapassado apenas pelo Vitória de Setúbal (1910), pelo Barreirense (1911) e pelo União Futebol Comércio Indústria (1917).
Nasci no dia primeiro de Maio de 1918, numa época de grandes convulsões sociais, decorria a primeira guerra mundial, a Grande Guerra, que terminaria às 11 horas do dia 11 de Novembro de 1918, em que participaram muitos portugueses (morreram 1643), incluindo sarilhenses. Ainda se sentia as repercussões da Revolução Russa, que ocorrera cinco meses antes, em 7 de Novembro de 1917, calendário gregoriano. No resto do mundo predominava as influências dessa revolução. O movimento anarco-sindicalista português e as lutas sociais influenciavam as classes trabalhadoras. Por isso, não eram raras as conotações com as datas mais significativas das lutas dos trabalhadores em todo o mundo. Vivia-se um período de revoltas, golpes e contra-golpes na jovem República Portuguesa, que tinha sido implantada apenas há oito anos, em 1910. Assisti, ainda criança, tinha apenas oito anos, ao golpe de estado que pôs fim à primeira República, e que viria chamar-se Estado Novo, ditadura fascista, que durou 48 anos: de 28 de Maio de 1926 a 25 de Abril de 1974. Foi verdadeiramente um período muito atribulado em termos políticos e sociais. Daí a particularidade do meu nome, 1º de Maio, que não terá surgido por acaso, com uma forte conexão política alusiva ao Dia Internacional do Trabalhador, apesar de a população ter sido sempre levada a esquecer essa particularidade.
Sou filho de fragateiros, marítimos, de Sarilhos Pequenos. Fui criado para servir a população sarilhense através do futebol, mas não me cingi só ao futebol, tive também uma função social muito importante na vida das pessoas, pelo menos até à década de 1970. A vivência colectiva era uma realidade social naquela época de muitas carências, devido às circunstâncias de vida. Quando nasci, só havia tabernas (tavernas) em Sarilhos Pequenos, que chegaram a ser vinte. Por isso, com o tempo, acabei por desempenhar essa função social, que muito me apraz registar neste momento: os bailes, o cinema ambulante, os cantos de fado, a televisão (quando apareceu a televisão em Portugal, em 1957/58, o clube comprou uma TV, a primeira em Sarilhos Pequenos, a par do Café Rocha, e pôs à descrição dos sócios, mediante o pagamento de 5 ou 10 tostões, já não me lembro bem) e outros espectáculos afins que proporcionei à população. Recordo com um carinho especial o grande espectáculo das crianças das duas escolas primárias no início da década de 1960, morava eu na rua Teófilo de Braga.
Durante mais de 50 anos fui, por assim dizer, o centro de convívio da população, a referência cultural e desportiva (dentro das minhas limitações) onde todos vinham conviver e extravasar de alegria para esquecerem as agruras de vida. Contribui muito para o bem-estar afectivo do povo de Sarilhos Pequenos e até para o bem-estar físico: auxiliei em momentos de necessidades, ajudando algumas famílias com espectáculos de beneficência (os benefícios), em que as receitas revertiam a favor de alguns infortunados acometidos de doenças como a tuberculose, por exemplo. Contribui para muitos namoros e casamentos, através dos bailes. Ajudei alguns jogadores do clube, vindos de fora, naturais de outras terras, a casarem com raparigas de Sarilhos. Ajudei até com comida, como se fosse um “restaurante”, imagine-se!... Foi na década de 1960, quando um jogador do 1º de Maio, o “Malha”, guarda-redes, jogava a troco de comida. Para o efeito, o clube solicitou os serviços da saudosa Carolina “Maracha”, «a cozinheira», para confeccionar os alimentos. Naquele tempo jogava-se por amor à camisola, quero dizer, ao clube, os jogadores não recebiam nada em troca a não ser as mazelas provenientes dos jogos. Assim, ficou acordado fornecer uma refeição ao “Malha”, normalmente era o jantar (bife com batatas fritas e um ovo estrelado, o conhecido bitoque, era o que ele mais gostava):“Ó «Carlinda», o meu bife já está pronto?” Era assim um rapaz um pouco orgulhoso, apesar das carências económicas que evidenciava (talvez essa sua imodéstia fosse só aparência?...).
Das quatro moradas em que vivi – a primeira, provisória, na rua Antero de Quental, por cima da taberna do Ti–Zacarias “Penetra”; a segunda, na rua Luís de Camões, num barracão adjacente à taberna do Ti–“Zé Pataco” (Rosa da Mónica); a terceira morada, já com carácter permanente, na Rua Teófilo de Braga, onde vivi muitos anos até ao início da década de 1970, data em que mudei para sede própria (Ginásio), construída com o abnegado esforço da população, situada na rua com o mesmo nome: 1º de Maio – foi no nº 37 da rua Teófilo de Braga que me senti mais realizado, que percebi a verdadeira razão da minha existência, que dei muitas alegrias às pessoas e onde me senti verdadeiramente feliz. Bem sei que a felicidade não existe, mas às vezes acontece. E ali, naquele local, a SEDE, como todos chamavam, a felicidade aconteceu muitas vezes. E se a felicidade são momentos, então, tivemos muitos momentos felizes, eu e a população, apesar de todas as contrariedades da vida.
Hoje, devido às circunstâncias, a população está de costas voltadas para a sede (GINÁSIO, como todos passaram a chamar), mas não me queixo, todos temos o nosso tempo, apesar de este tempo também ser o meu, porque existo, estou vivo. Porém, sei reconhecer os novos tempos e compreender as novas gerações. Sei que já não desempenho essa função social que tanto gostava, agora os tempos são outros, tudo acabou: o futebol, os bailes, o cinema ambulante, os cantos de fado, as excursões colectivas acompanhando o clube, os convívios, etc. etc. Mas eu entendo as mudanças, elas são uma constante da vida, tal como os sonhos. Se é muito importante fazer 100 anos, não é menos importante ter consciência das nossas limitações perante este novo mundo da globalização e das novas tecnologias.
Talvez o segredo de viver tanto tempo tenha sido o facto de ser criado com “ariadas” (aguardente com açúcar) e “caldinhos” (café com ginjas e canela), bebidas muito apreciadas pelos meus fundadores, fragateiros dos botes do pinho. O bom trato e a generosidade também me fizeram bem à saúde e ajudaram-me a chegar a esta idade centenária.
Diz-se que existe apenas uma idade para sermos felizes, apenas uma época da vida de cada pessoa em que é possível sonhar, fazer planos e ter energia suficiente para os realizar apesar de todas as dificuldades e todos os obstáculos. Uma só idade para nos encantarmos com a vida e vivê-la intensamente, sem medo de errarmos. Essa idade, tão fugaz na nossa vida, chama-se presente e tem a duração do instante que passa.
E apesar de me sentir inactivo, quase esquecido, ainda respiro, ainda sinto o vento a soprar nas árvores dos pinhais do Mocho e do Inglês. Também sinto as crianças da escola primária, aqui mesmo ao lado, a brincar alegremente, cheias de vida, como se fossem borboletas voadoras em plena liberdade. Não fora umas jovens que tomaram conta de mim e aqui vêm de vez em quando fazer-me companhia e abrir as janelas para arejar, já tinha definhado completamente, partido para o infinito.
Agora, ao contrário desses tempos em que só aos homens era permitido serem directores do clube (não me lembro de nenhuma mulher que tivesse sido dirigente), numa sociedade profundamente machista, também são as mulheres, as jovens, que me mantêm “ligado à máquina”, que cuidam de mim actualmente. Imagine-se! Quem diria!
Não importa se faço vinte, quarenta, sessenta ou 100 anos! O que importa é a idade que eu sinto. E sinto que ainda tenho muito para dar e receber. Se não for através do futebol que seja de uma outra forma, culturalmente falando, ao serviço da população, do bem comum.
Agora que saí da 4ª idade e entro resolutamente na 5ª idade – a última, inexorável – e estou praticamente sem uso, ou com pouco uso, a última coisa que desejaria é que me lembrassem os anos... Mas neste caso, porém, não se trata de uma comemoração, mas sim de uma homenagem de amigos. E os amigos – é o tempo que nos ensina – são o que de mais precioso há na vida.
Termino este texto com optimismo, apesar desta fase da minha existência menos interessante. Ficam as memórias das coisas boas da minha vida de centenário, e foram muitas! Há coisas na vida que não se repetem. Não se pode comprar o tempo. O passado não volta mais. Mas também não se pode apagar esse passado, ele permanece sempre na história e na memória dos homens, na memória dos sarilhenses.
Continuo a sonhar com dias melhores. Os sonhos são utopias que comandam a vida. E a utopia justifica-se e necessitamos mesmo de manter vivas todas as utopias. Afinal a vida não é ela também uma eterna utopia? Não desejamos nós ser mais do que simplesmente existir? O progresso da humanidade não é senão a realização das utopias. Os sonhos desvanecem-se, mas as utopias mantêm-se...
A noite é sempre a parte do dia mais vaidosa. É aí que os sonhos surgem como estrelas cadentes. É aí que me lembro de todos! Temos sido bons amigos. Até sempre!
Citando o poeta popular António Aleixo, eu diria que:
O homem sonha acordado;
Sonhando a vida percorre…
E desse sonho dourado
Só acorda, quando morre!
Parabéns pelo aniversário! Viva o 1º de Maio clube e viva o 1º de Maio dia do trabalhador!
Antes do 25 de Abril de 1974, em Sarilhos Pequenos, havia duas formas distintas de dar vivas (saudar com vivas) ao 1º de Maio. Se fossem vivas ao 1º de Maio clube, ao futebol, eram pacificamente tolerados, apoiados e bem recebidos. Se fossem vivas ao 1º de Maio dia do trabalhador, dia de luta política contra a ditadura, não eram tolerados, eram proibidos, inspiravam receios e podiam até levar à prisão.
Marcolino Cardoso Fernandes (Escreve pela ortografia antiga e não pela nova ortografia “brasileira”)
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