Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Todos nós somos iluminados pelo mesmo sol e molhados pela mesma chuva. Ninguém é melhor que ninguém nesta vida, estamos todos vulneráveis neste planeta terra que, em minha opinião, deveria chamar-se Planeta Oceano, por ser constituído por 70% de mar e só 30% de terra. É um oceano com pequenas ilhas terrestres.
Os medos servem para demonstrar o quão vulneráveis somos. Por isso, se desarrebitarmos o nosso nariz e tornarmo-nos mais humildes não vem mal nenhum ao mundo, pois no lugar para onde vamos, seja em poucos ou muitos anos, não poderemos levar o nosso orgulho e muito menos os bens materiais pelos quais nos dedicamos toda a vida.
O homem sempre foi, e continuará a ser, um ser intrinsecamente vulnerável. Está dependente de outros e sujeito a acidentes, catástrofes, guerras, doenças, pestes, e factores biológicos como bactérias e vírus, que deixam evidente a vulnerabilidade social e do próprio ser humano.
Mergulhado nos meus pensamentos, e por ser dia da criança, hoje lembrei-me dos meus companheiros de infância e todos os sarilhenses que viveram a época dos botes do pinho, das marinhas do sal, da lameira, dos banhos no rio, da subida aos pinheiros, das idas à fruta proibida, das brincadeiras em colectivo, dos jogos populares, dos jogos de futebol-mudava aos cinco e acaba aos 10 golos, e por aí fora…Brincar, brincar, brincar, quais borboletas voadoras…
Parece que foi ontem. Mas o tempo é implacável para todos. Mais ainda para nós, que temos um horizonte de vida mais limitado. Uma vida que é muito fugaz. Mas, apesar disso, nós gostamos de estar cá. Não podemos comprar o tempo, nem podemos ir ao supermercado comprar vida. Então, só nos resta mesmo dar significado à vida e lutar por ela. E lutamos porque ainda cá estamos, o nosso tempo ainda é este, mas também já foi outro. E nesse outro tempo, o que mais me marcou socialmente em termos de vivência colectiva, foi a infância, a nossa infância na década de 1950.
O facto de vivermos em ditadura quando éramos crianças e, em muitos casos, com carências económicas, não nos impediu de tirarmos partido do meio em que crescemos, para usufruirmos da liberdade, a nossa liberdade, a liberdade de brincar e de sonhar em colectivo. Aqueles sonhos em que sonhamos acordados: quem sonha acordado tem consciência da realidade que escapa a quem sonha a dormir.
Soubemos resistir a todas as contrariedades da vida e conseguimos transformar as dificuldades em momentos felizes, através das brincadeiras em colectivo.
Nós nunca conseguiremos despegar da criança que fomos, ela continuará sempre presente no nosso corpo até ao fim da vida presa ao nosso imaginário infantil. E, de vez em quando, em situações difíceis como a que estamos a viver agora, ela liberta-se para nos lembrar quem somos, porque a vida é a infância da imortalidade. A lembrança da infância é o único sonho real que nos resta na fase madura da vida, os demais são meras utopias. Quem viveu a infância como nós vivemos colectivamente em Sarilhos Pequenos, sentir-se-á indubitavelmente marcado para sempre. A infância molda-nos o carácter. Daí, talvez o desejo de muitos de nós em regressar às origens. De vez em quando as nossas reminiscências despertam para essa fase da vida, que nós vivemos intensamente na nossa aldeia ribeirinha. Ribeirinha, mas também campestre.
Tínhamos um espaço imenso e um ar puríssimo: o rio para a gente se banhar; os barcos para contemplar; os campos semeados para apreciar, os pinhais para fruir, as quintas e as azinhagas para vaguear e ir à fruta proibida, e as ruas (sem carros) para brincar.
Éramos impelidos a procurar e a improvisar as brincadeiras possíveis e imaginárias, de acordo com o tempo e o espaço, ao ritmo da vida da época, onde a componente física era preponderante, ao contrário do sedentarismo por que passam as crianças de hoje. Eram outros tempos, gerações diferentes, vivências partilhadas.
Isto não quer dizer saudosismo, quer dizer que temos memória. A memória é a cultura de um povo, é o seu maior património. Preservá-la é perpetuar valores, é deixar um legado às novas gerações.
Nada tem a ver com aquela frase retrógrada, que às vezes ouvimos: No meu tempo é que era bom!…Blá, blá, blá.. O nosso tempo é sempre o tempo em que vivemos, desde o nascimento até ao fim da vida. E nesta vida só existem três verdades absolutas, que são: nascer, viver e morrer. Tudo o resto são invenções.
A nossa terra, digo isto sem chauvinismos e sem revivalismos desmedidos, por mais pequena que seja, tem sempre a grandeza do mundo. “Uma terra pequena não quer dizer gente pequena, porque cada terra tem o tamanho de acordo com os feitos do seu povo”.
Parafraseando Fernando Pessoa, eu direi o seguinte:
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Este texto não segue as normas do Novo Acordo Ortográfico. Não escrevo de acordo com a nova ortografia. Agora um facto é um fato, não é um acontecimento. Para ser um acontecimento talvez tenhamos que passar a chamar “terno” ao fato. E terno é simplesmente carinhoso.
P:S. - O texto vai acompanhado de uma tentativa de música dedicada às crianças de ontem, raparigas e rapazes de Sarilhos Pequenos, em particular aos meus companheiros de infância da década de 1950
Marcolino Fernandes
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.