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OS SARILHENSES E A MÚSICA

A propósito do aniversário do cinquentenário da formação do Conjunto Musical “Sol Vermelho”, de Sarilhos Pequenos, 1971 – 2021.

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Ao contrário dos nossos vizinhos de Sarilhos Grandes e Rosário, que ainda hoje têm bandas de música, cada um com o seu coreto, nós privilegiámos o futebol, que já não temos. Mas isso não quer dizer que não tenhamos tido uma forte ligação à música, sobretudo ao fado. Mas não foi só ao fado, também tivemos conjuntos musicais, bandas, como agora se diz, e vários instrumentalistas e cantores. Cantores e “cantadadores” de fado, apesar de não existir o verbo “cantadar”.

Em 1971, se a memória não me trai, foi constituído o Conjunto Musical “Sol Vermelho”, faz este ano 50 anos: 1971 - 2021. Elementos que fizeram parte do conjunto musical: Manuel Rodrigues (Manuel da Leonor, vocalista), António José Batista Casaca (o “Casaquita”, também fez de vocalista algumas vezes), António José Fernandes (viola ritmo), Domingos Fernandes (meu irmão, viola baixo), José João Fernandes (guitarra elétrica. Um bom instrumentista musical que, ao longo dos anos, evoluiu muito para a música. Hoje é um cantor multifacetado, ao que julgo saber, canta vários géneros de música, incluindo o fado), Joaquim ‘da Policarpa’ (acordeão e órgão. Menciono assim o nome para não incluir mais uma alcunha brejeira), Joaquim Fernandes (percussão, bateria), “Chico da Maria” (também ia esporadicamente tocar bateria) e António ‘da Albertina’ (também tocou bateria). Outro elemento que fez parte do Conjunto “Sol Vermelho” foi o grande músico de Sarilhos Grandes, já falecido, o “Leão”. Era um exímio tocador de saxofone, mas também tocava outros instrumentos musicais. Hoje, com as novas tecnologias já se fazem bailes com uma só pessoa a tocar e a cantar através da chamada mesa-de-som, misturadora, ou simplesmente mixer, que favorece muito as despesas das colectividades e substitui os grupos musicais, mas não é a mesma coisa. É o caso de Miguel Rodrigues, que faz os bailes da colectividade “Os Leças”, no Barreiro.

Nas décadas de 1940 e 1950 existiram em Sarilhos Pequenos dois conjuntos musicais, precursores do “Sol Vermelho”: “Companheiros do Luar” e “Os Águias de Ouro” fundado em 18 de Abril de 1954, cujo presidente foi Amaro Georgino Fernandes (Salpico). Um conjunto musical com um presidente é uma curiosidade, mas as coisas funcionavam assim à época. Terá sido ele, com certeza, o impulsionador, aquele que tomou a iniciativa de formar o conjunto. Além do próprio Amaro Fernandes, que tocava banjo, outros elementos fizeram parte destas memórias musicais: Manuel Miranda (Fonseca), vocalista; António José (O China) tocava viola, Francisco Caetano, Manuel “Vidro”, Joaquim Fernandes, João "Caralhotas" e outros. Desculpem o termo “Caralhotas”, mas só por esta alcunha ele é (era) reconhecido. Ele e outros, cujas alcunhas brejeiras estavam adicionadas ao primeiro nome. Para nós, sarilhenses, é normal e instintivo chamar as pessoas pelas alcunhas, mesmo que derivadas de palavras mais impudicas, que eram (são) várias.

Os instrumentos de corda da época, guitarra clássica (viola), guitarra portuguesa e banjo, mantiveram-se carinhosamente preservados e dependurados nas paredes das casas e arrecadações dos seus utilizadores, como era o caso de Amaro Fernandes, que visitei várias vezes em sua casa. Esses instrumentos marcaram uma época e foram companheiros de muitas alegrias, marcando um tempo e uma geração. Conheci três pessoas de Sarilhos Pequenos, já falecidas, que tinha banjos em casa, constatei isso presencialmente, mas não sei se os seus descendentes, herdeiros desse legado, terão valorizado e preservado esses instrumentos musicais. Todavia, as memórias prevalecem no nosso imaginário.

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                                                                 Documento do Conjunto  "Os Águias de Ouro"

Os conjuntos musicais abrilhantaram os bailes com grande fulgor e entusiasmo. Pelo meio foram aparecendo outros grupos musicais de circunstância, com vários elementos que passaram por outros conjuntos. Naqueles tempos, os bailes eram entretenimento de agradável lazer que os jovens e adultos desfrutavam com prazer. Bailes, cinema ambulante, cantos de fado, futebol e outros jogos populares. Era o que havia em termos lúdicos, numa época de pura vivência colectiva. A juventude transpirava de alegria, depois de uma semana de trabalho, dançando ao som dos conjuntos musicais, que tinham melodia, música dos anos 60, sem o barulho actual de algumas bandas de “abanar o capacete”. As raparigas e os rapazes de então deleitavam-se com o convívio dos bailes, pelos contactos voluptuosos que os mesmos propiciavam quando a dança começava. Eram dias e noites de magia, de sonhos, de fantasias, de folia e de convívio. Muitos amores e desamores, namoros e casamentos iniciaram-se nos bailes, alguns resultaram em matrimónios bem-sucedidos e duradouros.

Quanto ao fado, fadistas e guitarristas, a história é mais intemporal, prevalecem até hoje os fadistas e seus acompanhantes à viola e à guitarra portuguesa. A esse propósito, menciono apenas alguns nomes de fadistas e guitarristas de outros tempos. Começo pelos fadistas: Abílio (pai do ‘Lhica’), “Antoniozinho” (familiar do actual fadista Toinozinho, meu estmado companheiro de infância), António “Charro”, António Francisco “Paquistão”, Joaquim Fernandes, "Canhoto" (também cantou fado) e vários outros que cantavam esporadicamente. Em algumas tabernas também se cantava o fado. Cantava-se nas tabernas e na sede do 1º de Maio Futebol Clube Sarilhense, todos fadistas amadores. Quanto aos guitarristas: Manuel “Vidro” [pai] (guitarra portuguesa), Manuel “Vidro” [filho] também tocava guitarra (viola), António “Chouriço” (guitarra portuguesa), Zacarias Fernandes (guitarra portuguesa), outro Zacarias Fernandes (‘Penetra’ de alcunha, pai de ‘Salpico’) também tocava um instrumento de cordas, Policarpo, Francisco Fernandes (irmão do “Canhoto”, que também tocava guitarra elétrica num conhecido bar no Cais do Sodré, julgo ter sido no “Filadélfia”, não tenho a certeza, e era chamado de “Zé Cacilheiro”) e outros. Nomes de Fadistas contemporâneos: António Manuel Gomes (‘Toinozinho’), António Costa (‘Toino da Lola’, também toca viola), Diogo Gomes e outros. Estes três sarilhenses são os mais conhecidos a cantar fado actualmente, mas admito que haja outros que desconheço. Estou a referir-me aos que cantam em Portugal. Também sei que existe um conjunto vasto de jovens, e menos jovens, com actividade musical a nível instrumental, mas também vocal, a tocar e a cantar. Não conheço todos, como é evidente, mas posso mencionar apenas alguns, sem desprimor para os restantes, como é o caso de José J. Fernandes (emigrante no Canadá), que referi atrás, Carlos M.M. Rodrigues, Miguel Rodrigues, António Costa, Octávio Valente, Jorge Rodrigues, António José, André e vários outros que não sei os nomes, sem falar dos cantores de Karaok, que são imensos e para todos os gostos. É justo lembrar também que, já no século XXI, depois de reformado, Libério R. Almeida, aprendeu solfejo (ler as notas que estão numa pauta seguindo as alturas e ritmos anotados na partitura) e fez parte das bandas de música de Sarilhos Grandes e Rosário, como saxofonista. Já agora refiro também meu pai, que era um exímio tocador de harmónica (gaita-de-beiços). Dois de nós, dos quatro irmãos, tocamos guitarra (viola) há muitos anos. Também existem dois poetas populares em Sarilhos Pequenos: João Martins e Jorge Valente. Quem ler o livro de poesia: "Uma Reflexão Junto ao Tejo", encotrará ali poemas interessantes para serem musicados para o fado.

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Antigos sarilhenses, todos identificados, em poses de músicos. A foto da direita é dissimulada, nenhum era músico. É tudo "faz-de-conta". Em relação à foto da esquerda, já tenho dúvidas. Não sei se não terão mesmo tocado, talvez o José "Lé", que está com a viola?

Existem (penso que ainda posso utilizar o presente indicativo do verbo existir e não o pretérito perfeito, existiram) duas figuras de Sarilhos Pequenos que merecem destaque: Francisco Fernandes (não tenho a certeza se o apelido é Fernandes) e a Justina M. G. Oliveira, a “Estina”. O Francisco foi (é) pianista, penso que ainda será vivo, não tenho essa informação, ter-se-á dedicado ao ensino, professor de piano, ao que julgo saber. Era praticamente meu vizinho, morava a vinte ou trinta passos, mais ou menos, da minha casa. Quando era criança ouvi muitas vezes o som das suas teclas, vindo da janela da sua casa, quando ali passava. Saiu de Sarilhos Pequenos há muitos anos. Não o vejo há mais de 50 anos. Nas décadas de 1950/1960, um pianista em Sarilhos Pequenos não era coisa de somenos.

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Estão todos identificados. Só o que está de chapéu não era de Sarilhos Pequenos.

Quanto à “Estina”, que na sua adolescência foi fadista amadora durante um período muito fugaz, é também uma história singular, tal como o Francisco. Lembro-me de a ver e ouvir cantar, na sede do 1º de Maio, o fado “Rosa Enjeitada”, de Raul Ferrão. Deram-lhe o nome artístico de “Tina Maria”. Os mais jovens poderão ficar surpresos, mas os mais velhos lembrar-se-ão certamente, se não todos, pelo menos alguns, e tinha boa voz.  

Por que razão destaco estas duas pessoas e não outras? Porque quebraram barreiras, derrotaram tabus, venceram obstáculos. O Francisco é invisual, nasceu numa pequena aldeia ribeirinha, numa época pouco permissora, onde as oportunidades eram poucos, muito menos ainda para uma pessoa cega. Era um rapaz diferente, oriundo de uma família humilde, tal como a como a maioria das famílias de Sarilhos Pequenos da época, prole elevada: seis irmãos. Só me lembro de seis, espero não estar enganado. A maioria das crianças estava predestinada a seguir as pisadas dos pais, fragateiros do Tejo, mas ele, por motivos óbvios, seguiu um rumo diferente, conseguiu caminhar apesar da distância; vencer apesar dos obstáculos e acreditar acima de tudo. Naqueles tempos, nas pequenas aldeias, alguns carregavam o estigma da sua condição fisicamente, por serem diferentes, outros por pobreza estrema. Em meios pequenos, o preconceito e a ignorância era uma característica da época. Por isso, muitos homens e mulheres devem a grandeza da sua vida aos obstáculos que tiveram de vencer.

A “Estina”, por ser mulher e também originária de uma família muito humilde, enfrentou o preconceito e cantou o fado (a propósito do nome “Estina” convém lembrar que, em Sarilhos Pequenos, até nos nomes éramos poupados, usávamos diminutivos e alcunhas para abreviar os nomes das pessoas: Justina, “Estina”; Gertrudes, “Estrudes”, Maria José, “Marizé”; Brigida, “Brisa”; Carolina, “Carlinda”; Cândida, "Cainda"; Filomena, “Formena”, etc.). O fado era cantado nas tabernas onde as mulheres não paravam. Por isso, era difícil uma jovem rapariga impor-se ao status-quo da sociedade da época, comunidade sarilhense, sobretudo a cantar fado, e ela fê-lo, apesar dos mexericos. As línguas, por mais afiadas que sejam, não podem esquecer que são os dentes que cortam. Até porque o fado foi criado por uma mulher, ao que se diz, a Severa, Maria Severa Onofriana de seu nome completo, que morreu em 1846, tinha apenas 26 anos. Uma mulher muito sofrida, também ela.

Nascemos em tempos difíceis, desiguais, mas aprendemos a viver. Se eu quisesse dissertar metaforicamente, diria: Se não podermos voar, corremos. Se não podermos correr, andamos. E se não podermos andar, seguimos em frente de qualquer maneira, mesmo de rojo.

Neste texto, em suma, fica uma ideia: legar memórias é legar cultura. A cultura é um conjunto de ideias, comportamentos, símbolos e práticas sociais aprendidos de geração em geração através da vida em sociedade. Ter cultura é ter o poder de transmitir conhecimento. Nós temos a capacidade de nos adaptarmos às mudanças e às modificações dos tempos e fazer com que as memórias, o património cultural de uma geração passe para as gerações seguintes, pois com o passar do tempo a cultura é influenciada por novas maneiras de pensar inerentes ao desenvolvimento do ser humano. No nosso caso, Sarilhos Pequenos, estamos a falar da chamada cultura popular, não populista. A cultura popular é criada pelo próprio povo, que tem parte activa nessa criação. Pode ser literatura, pintura, escultura, artesanato, arte, toda a arte, e música, que resulta das tradições e costumes, sendo transmitida para as gerações seguintes de forma oral, escrita, fotográfica, pictórica, etc. São manifestações culturais que se expressam através de várias formas: usos e costumes, danças e festas, fado, carnaval, artesanato, cantigas, contos, fábulas, lendas urbanas e rurais, entre outras. O fortalecimento e a valorização da cultura popular são de grande importância para o desenvolvimento local, além de preservar a Identidade cultural dos sarilhenses.

Existem dois grupos de amigos sarilhenses que, de vez em quando, se junta (juntava, antes do vírus) para recordar e manter vivas as memórias sarilhenses. É também uma manifestação cultural, embora em forma de convívio, tipo tertúlia de amigos, mas onde se canta o fado, diz-se poesia e contam-se histórias de infância. É uma boa maneira de não permitir que as nossas raízes, as nossas memórias e a nossa história sejam esquecidas, ao mesmo tempo que se fortalecem amizades. Quão importante seria a criação de espaços para a cultura popular nos eventos locais, no sentido de preservar, divulgar e perpetuar memórias, património cultural! Parabéns a esses dois grupos de amigos! 

Não estamos agarrados ao passado quando evocamos memórias. A memória é dinâmica e liga as três dimensões temporais. Ao ser evocada no presente, remete ao passado, mas sempre tendo em vista o futuro. A memória cultural preserva e herança simbólica a que nós recorremos para construir a nossa identidade e para nos afirmarmos como parte de uma comunidade, é o vínculo entre passado, presente e futuro.

Concluindo, direi que não se trata de um texto minucioso, imaculado, pretensioso, haverá com certeza lapsos de informação, nomes de pessoas não mencionadas, etc. Por isso, estou sempre disponível para receber contributos, informações, que possam ser úteis para o próximo trabalho: “Memórias e Histórias de Sarilhos Pequenos”. O que conta é a intenção, os objectivos, tudo o resto é relevável. 

Termino com a mesma máxima de sempre, quando me referiro à terra onde nasci e fui criado: "Uma terra pequena não quer dizer gente pequena, porque cada terra tem o tamanho de acordo com as obras do seu povo."

Marcolino C. Fernandes não escreve de acordo com o Novo Acordo Ortográfico “brasileiro”.

 

 

 

 

 

 

 

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